.3. cantiga de hoje à noite

Não. Não me peçam singelezas.
Se penso em flores, céu e campo,
o pensamento espalhado bucólico em recantos de infância,
se pesquiso espantos renascidos de ocultos vãos de memória,
a forma me sai fria, em gelo e sal.
Nos ásperos caminhos de meu tempo
já não encontro passos predestinados:
cirandas confusas em torno de ídolos de pedra, desesperados abraços, desvairados encontros
sem amanhã, sem depois.
Já não consigo amenidades no falar.
As estruturas criadas em cristal são apenas vidro,
vidro partido violentando veias onde nasce um sangue inerte.
Inútil sangue de meu tempo
percorrendo escuros caminhos de cansaço.

Por favor, não esperem doçuras do meu canto.
Não esperem doçuras de ninguém mais,
não esperem se quer o canto:
maldito aquele que quiser purezas.
E no entanto, houve um tempo em que eu cantava.
Nos teares antigos de meu peito
rocas de prata entreteciam esperas,
intermináveis rendas de alegria.
Geradas por raízes de terra
uma seiva lenta e calma envivecia os membros.
Ainda assim, o voo pesa.
O impossível voo em meu corpo sem asas.

Peçam-me apenas silêncios. E que no meu escuro claustro
encontre aqueles cantares, encontre a mão de um amigo.
Mas já não creio em canções e os amigos me traíram.
Em traições e guitarras, difícil achar a flor.

Caio Fernando Abreu 
13 de abril de 1969

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