II. sobre o vulcão.


no se puder vivir sin amor (Malcoim Lowry, 1985)

Naquele tempo, minha única ocupação diária era tentar não morrer. Talvez pareça excessivamente dramático dito assim, mas assim era. Nem sinistra ou espantosa, apenas cotidiana feito xícara de café, janela aberta ou fechada sobre esse espaço vago que chamam de o depois, dentro e fora de mim, a morte estava sempre presente.
Naqueles dias uterinos, gordurosos, naqueles dias amnióticos quando eu não conseguia sequer sair da cama, trinta horas em posição fetal sem dormir nem viver, numa espécie de ensaio geral da treva definitiva deflagrada pela hospitalização de Daniel, pouco mais de quarenta quilos e nódulos púrpuras espalhados pelo corpo quase de criança onde, do antigo, restaram apenas os enormes olhos verdes, e também pelo suicídio de Julia, pulsos cortados e a cabeça enfiada no forno do fogão a gás, vestida de bailarina com tutu
de gaze azul e sapatilhas, depois de ter grafitado em spray rosa-choque no lado de fora da porta da cozinha alguma coisa em espanhol, alguma coisa amarga, alguma coisa assim: no se puede vivir sin amor. Daquele tempo nem tão distante, daqueles dias que até hoje duram às vezes duas, às vezes duzentas horas, restou esta sensação de que, como eles, também me vou tombando rápido dentro da boca de um vulcão aberto sem fôlego nem tempo para repetir como numa justificativa, ou oração, ou mantra, enquanto caio sem salvação no fogo que é verdade, que si, que no, que nadie puede mismo vivir sin amor.

 (Caio Fernando)

Comentários

Postagens mais visitadas