os sobreviventes .1.
(Para ler ao som de Ângela Ro-Ro)
Sri Lanka, quem sabe? ela me pergunta, morena e ferina, e eu respondo
por que não? mas inabalável ela continua: você pode pelo menos mandar
cartões-postais de lá, para que as pessoas pensem nossa, como é que ele foi
parar em Sri Lanka, que cara louco esse, hein, e morram de saudade, não é
isso que te importa? Uma certa saudade, e você em Sri Lanka, bancando o
Rimbaud, que nem foi tão longe, para que todos lamentem ai como ele era
bonzinho e nós não lhe demos a dose suficiente de atenção para que ficasse
aqui entre nós, palmeiras & abacaxis. Sem parar, abana-se com a capa do
disco de Ângela enquanto fuma sem parar e bebe sem parar sua vodca
nacional sem gelo nem limão. Quanto a mim, a voz tão rouca, fico por aqui
mesmo comparecendo a atos públicos, pichando muros contra usinas
nucleares, em plena ressaca, um dia de monja, um dia de puta, um dia de
Joplin, um dia de Teresa de Calcutá, um dia de merda enquanto seguro aquele
maldito emprego de oito horas diárias para poder pagar essa poltrona de couro
autêntico onde neste exato momento vossa reverendíssima assenta sua
preciosa bunda e essa exótica mesinha-de-centro em junco indiano que apóia
nossos fatigados pés descalços ao fim de mais outra semana de batalhas
inúteis, fantasias escapistas, maus orgasmos e crediários atrasados. Mas
tentamos tudo, eu digo, e ela diz que sim, claaaaaaaro, tentamos tudo,
inclusive trept, porque tantos livros emprestados, tantos filmes vistos juntos,
tantos pontos de vista sociopolíticos existenciais e bababá em comum só
podiam era dar mesmo nisso: cama. Realmente tentamos, mas foi uma bosta
Que foi que aconteceu, que foi meu deus que aconteceu, eu pensava depois
acendendo um cigarro no outro e não queria lembrar, mas não me saía da
cabeça o teu pau murcho e os bicos dos meus seios que nem sequer ficaram
duros, pela primeira vez na vida, você disse, e eu acreditei, pela primeira vez
na vida, eu disse, e não sei se você acreditou. Eu quero dizer que sim, que
acreditei, mas ela não pára, tanto tesão mental espiritual moral existencial e
nenhum físico, eu não queria aceitar que fosse isso: éramos diferentes, éramos
melhores, éramos superiores, éramos escolhidos, éramos mais, éramos
vagamente sagrados, mas no final das contas os bicos dos meus peitos não
endureceram e o teu pau não levantou. Cultura demais mata o corpo da gente,
cara, filmes demais, livros demais, palavras demais, só consegui te possuir me
masturbando, tinha biblioteca de Alexandria separando nossos corpos, eu
enfiava fundo o dedo na boceta noite após noite e pedia mete fundo, coração,
explode junto comigo, me fode, depois virava de bruços e chorava no
travesseiro, naquele tempo ainda tinha culpa nojo vergonha, mas agora tudo
bem, o Relatório Hite liberou a punheta. Não que fosse amor de menos, você
dizia depois, ao contrário, era amor demais, você acreditava mesmo nisso?
naquele bar infecto onde costumávamos afogar nossas impotências em baldes
de lirismo juvenil, imbecil, e eu disse não, meu bem, o que acontece é que
como bons-intelectuais-pequeno-burgueses o teu negócio é homem e o meu é
mulher, podíamos até formar um casal incrível, tipo aquela amante de Virginia
Woolf, como era mesmo o nome da fanchona? Vita, isso, Vita Sackville-West e
o veado do marido dela, ra não se erice, queridinho, não tenho nada contra
veados não, me passa a vodca, o quê? e eu lá tenho grana para comprar
wyborowas? não, não tenho nada contra lésbicas, não tenho nada contra
decadentes em geral não tenho nada contra qualquer coisa que soe a uma
tentativa. Eu peço um cigarro e ela me atira o maço na cara como quem joga
um tijolo, ando angustiada demais, meu amigo, palavrinha antiga essa, a velha
angst, saco, mas ando, ando, mais de duas décadas de convívio cotidiano,
tenho uma coisa apertada aqui no meu peito, um sufoco, uma sede, um peso,
ah não me venha com essas histórias de atraiçoamos-todos-os-nossos-ideais,
eu nunca tive porra de ideal nenhum, eu só queria era salvar a minha, veja só
que coisa mais individualista elitista capitalista, eu só queria era ser feliz, cara,
gorda, burra, alienada e completamente feliz. Podia ter dado certo entre a
gente, ou não, eu nem sei o que é dar certo, mas naquele tempo você ainda
não tinha se decidido a dar o rabo nem eu a lamber boceta, ai que gracinha
nossos livrinhos de Marx, depois Marcuse, depois Reich, depois Castafieda,
depois Laing embaixo do braço, aqueles sonhos tolos colonizados nas
cabecinhas idiotas, bolsas na Sorbonne, chás com Simone e Jean-Paul nos 50
em Paris, 60 em Londres ouvindo here comes the sun here comes the sun little
darling, 70 em Nova York dançando disco-music no Studio 54,80 a gente aqui
mastigando esta coisa porca sem conseguir engolir nem cuspir fora nem
esquecer esse azedo na boca. Já li tudo, cara, já tentei macrobiótica
psicanálise drogas acupuntura suicídio ioga dança natação cooper astrologia
patins marxismo candomblé boate gay ecologia, sobrou só esse nó no peito,
agora faço o quê? não é plágio do Pessoa não, mas em cada canto do meu
quarto tenho uma imagem de Buda, uma de mãe Oxum, outra de Jesusinho,
um pôster de Freud, às vezes acendo vela, faço reza, queimo incenso, tomo
banho de arruda, jogo sal grosso nos cantos, não te peço solução nenhuma,
você vai curtir os seus nativos em Sri Lanka depois me manda um cartão postal
contando qualquer coisa como ontem à noite, na beira do rio, deve haver
uma porra de rio por lá, um rio lodoso, cheio de juncos sombrios, mas ontem na
beira do rio, sem planejar nada, de repente, sabe, por acaso, encontrei um
rapaz de tez azeitonada e olhos oblíquos que. Hein? claro que deve haver
alguma espécie de dignidade nisso tudo, a questão é onde, não nesta cidade
escura, não neste planeta podre e pobre, dentro de mim? ora não me venhas
com autoconhecimentos-redentores, já sei tudo de mim, tomei mais de
cinqüenta ácidos, fiz seis anos de análise, já pirei de cl ín k., lembra? você me
levava maçãs argentinas e fotonovelas italianas, Rossana Galli, Franco Andrei,
Michela Roc, Sandro Moretti, eu te olhava entupida de mandrix e babava
soluçando perdi minha alegria, anoiteci, roubaram minha esperança, enquanto
você, solidário & positivo, apertava meu ombro com sua mão apesar de tudo
viril repetindo reage, companheira, reage, a causa precisa dessa tua cabecinha
privilegiada, teu potencial criativo, tua lucidez libertária e bababá bababá. As
pessoas se transformavam em cadáveres decompostos à minha frente, minha
pele era triste e suja, as noites não terminavam nunca, ninguém me tocava,
mas eu reagi, despirei, voltei a isso que dizem que é o normal, e cadê a causa,
meu, cadê a luta, cadê o po-ten-ci-al criativo? Mato, não mato, atordôo minha
sede com sapatinhas do Ferro’s Bar ou encho a cara sozinha aos sábados
esperando o telefone tocar, e nunca toca, neste apartamento que pago com o
suor do po-ten-ci-al criativo da bunda que dou oito horas diárias para aquela
multinacional fodida. Mas, eu quero dizer, e ela me corta mansa, claro que
você não tem culpa, coração, caímos exatamente na mesma ratoeira, a única
diferença é que você pensa que pode escapar, e eu quero chafurdar na dor
deste ferro enfiado fundo na minha garganta seca que só umedece com vodca,
me passa o cigarro, não, não estou desesperada, não mais do que sempre
estive, nothing special, baby, não estou louca nem bêbada, estou é lúcida pra
caralho e sei claramente que não tenho nenhuma saída, ah não se preocupe,
meu bem, depois que você sair tomo banho frio, leite quente com mel de
eucalipto, gin-seng e lexotan, depois deito, depois durmo, depois acordo e
passo uma semana a banchá e arroz integral, absolutamente santa,
absolutamente pura, absolutamente limpa, depois tomo outro porre, cheiro
cinco gramas, bato o carro numa esquina ou ligo para o cvv às quatro da
madrugada e alugo a cabeça dum panaca qualquer choramingando coisas tipo
preciso-tanto-uma-razão-para-viver-e-sei-que-essa-razão-só-está-dentro-demim-bababá-bababá
e me lamurio até o sol pintar atrás daqueles edifícios
sinistros, mas não se preocupe, não vou tomar nenhuma medida drástica, a
não ser continuar, tem coisa mais autodestrutiva do que insistir sem fé
nenhuma? Ah, passa devagar a tua mão na minha cabeça, toca meu coração
com teus dedos frios, eu tive tanto amor um dia, ela pára e pede, preciso tanto
tanto tanto, cara, eles não me permitiram ser a coisa boa que eu era, eu então
estendo o braço e ela fica subitamente pequenina apertada contra meu peito,
perguntando se está mesmo muito feia e meio puta e velha demais e
completamente bêbada, eu não tinha estas marcas em volta dos olhos, eu não
tinha estes vincos em torno da boca, eu não tinha este jeito de sapatão
cansado, e eu repito que não, que nada, que ela está linda assim, desgrenhada
e viva, ela pede que eu coloque uma música e escolho ao acaso o Noturno
número dois em mi bemol de Chopin, eu quero deixá-la assim, dormindo no
escuro sobre este sofá amarelo, ao lado das papoulas quase murchas,
embalada pelo piano remoto como uma canção de ninar, mas ela se contrai
violenta e pede que eu ponha Ângela outra vez, e eu viro o disco, amor meu
grande amor, caminhamos tontos até o banheiro onde sustento sua cabeça
para que vomite, e sem querer vomito junto, ao mesmo tempo, os dois
abraçados, fragmentos azedos sobre as línguas misturadas, mas ela puxa a
descarga e vai me empurrando para a sala, para a porta, pedindo que me vá, e
me expulsa para o corredor repetindo não se esqueça então de me mandar
aquele cartão de Sri Lanka, aquele rio lodoso, aquela tez azeitonada, que
aconteça alguma coisa bem bonita com você, ela diz, te desejo uma fé enorme,
em qualquer coisa, não importa o quê, como aquela fé que a gente teve um
dia, me deseja também uma coisa bem bonita, uma coisa qualquer
maravilhosa, que me faça acreditar em tudo de novo, que nos faça acreditar
em tudo outra vez, que leve para longe da minha boca este gosto podre de
fracasso, este travo de derrota sem nobreza, não tem jeito, companheiro, nos
perdemos no meio da estrada e nunca tivemos mapa algum, ninguém dá mais
carona e a noite já vem chegando. A chave gira na porta. Preciso me apoiar
contra a parede para não cair. Por trás da madeira, misturada ao piano e à voz
rouca de Ângela, nem que eu rastejasse até o Leblon, consigo ouvi-la repetindo
e repetindo que tudo vai bem, tudo continua bem, tudo muito bem, tudo bem.
Axé, axé, axé! eu digo e insisto até que o elevador chegue axé, axé, axé,
odara!
Caio Fernando Abreu
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